Nesse post intitulado “Arquétipo da Sereia: descubra seu lado sombrio”, os leitores vão conhecer uma faceta ao mesmo tempo sedutora e sombria desse simbolismo na tradição do Ocidente.
Mas, antes, não deixe de conferir nosso post da Cleópatra:
Vem até nós, famoso Ulisses, glória maior dos Aqueus!
Para a nau, para que nos possas ouvir! Pois nunca
por nós passou nenhum homem (…)
que não ouvisse primeiro o doce canto das nossas bocas;
(…) Assim disseram , projetando as suas belas vozes;
e desejou o meu coração ouvi-las (…)
Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics Companhia da Letras, 2011, p. 325.
Ulisses, o herói mítico da Guerra de Tróia, empreende uma viagem de volta ao lar, em Ítaca. Mas o percurso não se dá sem grandes provações, colocadas a meio do caminho por Poseidon, deus dos mares. Elas servem, ao fim e ao cabo, para testar o valor e a resiliência do protagonista de Homero em Odisseia.
Uma dessas provações, assim, tem a ver com o arquétipo feminino das Sereias, monstros marinhos os quais enredam suas vítimas num ardil mortal. Metade do corpo para cima, jovens mulheres, de longos cabelos ondulados, como as ondas do mar, e o busto descoberto; a outra metade é composta de caudas e escamas, semelhante a um peixe, ou em alguns casos: penas, asas e garras, da mesma forma que um pássaro – nesses casos nos referimos a elas como Sirenes.
Conheça o nosso post de estreia na plataforma Medium, em que reflito sobre o arquétipo poderosíssimo da serpente. Para saber mais, clique no botão mais abaixo:
Descubra como funciona o lado sombrio do Arquétipo da Sereia
Sobre as rochas, elas entoam o seu belo canto, encantando todos aqueles que as ouvem. As Sereias despertam profundos e intensos desejos nos marinheiros, de modo que, domados por suas paixões, lançam-se rumo ao mar, onde encontram um túmulo para além da terra firme.
Arquétipo de Afrodite
As sereias provêm da nobre estirpe de Afrodite, deusa grega do amor, também chamada de Vênus, pelos romanos. A deusa do amor carnal surge da espuma do mar, do sêmen de Urano (céu), após o seu filho Cronos ter castrado o pai.
Dessa forma, o erotismo e a sedução femininos são elementos em comum que atam os arquétipos de Afrodite e das Sereias no ambiente do mar.
Arquétipo da Sereia e do Mar: descubra o lado sombrio
Assim, na época da Antiguidade greco-romana o vasto mar era bem mais ameaçador do que atualmente, uma vez que era, em grande parte, desconhecido. Além do mais, as tecnologias náuticas eram incomparavelmente mais precárias, colocando os navegantes marítimos à mercê da fúria da natureza, personificada em divindades, que se manifestavam em ventos violentos e correntes impetuosas.
Nessa vasta planície aquática, ainda por desbravar, quantos perigos, mas também quantos tesouros; como continentes distantes ocupados por fauna e flora exóticas; ou ainda cidades imperiais feitas de ouro maciço e protegidas por gigantes temíveis, e tantas outras fantasias projetadas além-mar.
Emboscadas marítimas
Por isso mesmo, o mar, mais do que qualquer outro elemento, é o símbolo por excelência do inconsciente – caos primordial e criativo, de onde nasce a vida; para onde ela retorna em dissolução.
Nem mesmo no espaço de uma vida humana inteira seria possível navegar por todo esse oceano mítico, da mesma forma que incontáveis aventuras nos espreitam pelas profundezas da psique.
Então, nesse cenário em que a odisseia da existência humana é consumada é que surgem as Sereias/Sirenes, símbolo de um desejo incontido e irrefreável. Um elemento de desagregação que, com o seu canto, desencaminha os navegantes, desviando-os da rota, uma vez que eles se esquecem dela. As paixões ardentes e os ardis são embalados numa nota só.
Se você é um aficionado por animais de poder, conheça também sobre o Arquétipo da Coruja clicando aqui.
Os conselhos da feiticeira Circe
Contudo, para além dessa face sombria do arquétipo há uma saída luminosa, que nos é relatado pela feiticeira Circe a Ulisses.
Às Sereias chegarás em primeiro lugar, que todos
os homens enfeitiçam, que delas se aproximam.
Quem delas se acercar, insciente, e a voz ouvir das Sereias,
ao lado desse homem nunca a mulher e os filhos
estarão para se regozijarem com o seu regresso;
mas as Sereias o enfeitiçam com o seu límpido canto,
sentadas num prado, e à sua volta estão amontoadas
ossadas de homens decompostos e suas peles marcescentes
Prossegue caminho, pondo nos ouvidos dos companheiros
cera doce, para que nenhum deles as ouça.
Mas se tu próprio quiseres ouvir o canto,
deixa que, na nau veloz, te amarrem as mãos e os pés
enquanto estás de pé contra o mastro; e que as cordas sejam
atadas ao mastro, para que te possas deleitar com a voz
das duas Sereias. E se a eles ordenares que te libertem,
então que te amarrem com mais cordas ainda.
Homero. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Rio de Janeiro: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p.320.
O autodomínio da emoções
Este trecho mais acima nos remete à engenhosidade da consciência, uma vez que Ulisses, amarrado ao mastro central do navio, foi capaz de entrar em contato com forças poderosas do mar/inconsciente, personificadas nas Sereias, sem cair em perdição.
Em comparação ao seus companheiros teve o melhor do dois mundos: não se privou das delícias do canto, pois não tinha cera que lhe tapasse os ouvidos, como os outros marinheiros, os quais, não obstante, estavam protegidos. Em outras palavras, a proteção que ele arranjou não lhe privou dos prazeres.
Mas também vale dizer que a engenhosidade, centrada no autodomínio das emoções, venceu o ardil das paixões. O mastro simboliza aqui o aspecto de autoconhecimento – Ulisses consciente de si mesmo e senhor de si próprio.
Arquétipo de integração e de bem-aventurança
Numa outra versão do mito sobre esse arquétipo, quando o viajante resiste ao encantamento sedutor das Sirenes/Sereias, elas se veem obrigadas a se jogarem no mar e, assim, são transformadas em rochas. Da mesma forma que antigas fantasias delirantes de nossa juventude, que agora, impotentes, integram-se à nossa psique como meros elementos figurativos da paisagem psíquica.
Todavia, independente do lado sombrio do arquétipo da Sereia, há também outros significados, mais benéficos. No Egito Antigo, por exemplo, podemos encontrar imagens de algumas sereias em sarcófagos. Elas representam, desse modo, imagens que ecoam doces harmonias aos Bem-Aventurados, almas que alcançaram a Ilha dos Afortunados no outro mundo.
Arquétipo da Sereia: seu lado sombrio revelado
Dessa maneira, vamos chegando ao fim de mais um post. A intenção era mostrar, por meio da Odisseia, como o arquétipo de paixão intensa da Sereia possibilita o aprimoramento do autocontrole – simbolizado por Ulisses amarrado ao mastro central do navio.
Então, o que acharam? Não se esqueçam de comentar! Elogios, críticas e sugestões são muito bem-vindos. Sendo assim, até à próxima!
Imagem destacada no início desse post: Photo by Jeremy Bishop on Unsplash